Maria e o Bloco

Na antiga Santa Casa os blocos cirúrgicos eram localizados em algumas enfermarias cirúrgicas; normalmente era uma sala com duas mesas cirúrgicas. As cirurgias eram feitas simultaneamente, uma do lado da outra, o cirurgião que estava operando um paciente podia conversar com quem estava operando outro paciente ao lado. O melhor bloco era o da Enfermaria 30, que tinha duas salas separadas e em cima havia o que chamávamos de aquário, onde podíamos ver as cirurgias sem entrar na área asséptica.  Não tinha sentido cada enfermaria ter seu bloco, e aos poucos alguns foram desaparecendo. Na década de setenta foi construído no local onde era o bloco da Décima, um novo bloco, que passou a se chamar Bloco Cirúrgico Sarmento Barata, porém até hoje é conhecido como bloco da Décima. Pude, como estudante, ver e acompanhar sua inauguração. Era um anseio de todos um bloco novinho em folha com cinco salas adequadas para as cirurgias de então.

    Para chefiar o bloco foi nomeada a Maria, uma auxiliar de enfermagem; acho que no passado tinha sido religiosa, pois tinha total confiança das irmãs; eram elas que faziam os serviços de enfermagem e administrativos nas enfermarias do hospital.

    Maria era uma mulher de rosto claro, alta, dinâmica e rígida; falava alto e sem parar; era de difícil relacionamento, principalmente com os estudantes. Quem fazia a maioria das cirurgias eram os doutorandos – alunos do sexto ano; a residência de cirurgia estava começando e havia poucos residentes. As cirurgias normalmente começavam cedo, seis horas da manhã, devido ao fato que os instrutores e professores tinham que ir para os seus hospitais e consultórios privados. Para controlar todos esses estudantes, a chefia tinha que ter este perfil. Porém, quando ela pegava no pé de alguém, as chances de esse infeliz conseguir operar eram pequenas.

    Como estudante, vendo aquele cenário, criei um certo sentimento negativo, pois não gostava da sua maneira de agir. Ao entrar para a residência de cirurgia geral, tive o cuidado de não entrar em atrito com ela. Não adiantou, pois logo de início tivemos uma discussão. Eu também não era fácil: um pouco irreverente e com muita vontade de aprender. Paranoicamente, senti que estava havendo uma dificuldade em conseguir marcar minhas cirurgias. – Caí em desgraça com a Maria, pensei. Com o passar dos dias, coisas só pioravam.

    Conversando com meu colega, que, ao contrário de mim, não estava tendo problema, ele me aconselhou conversar com ela. Foi o que fiz:

    – Maria, estou fazendo minha formação, e não posso ser prejudicado dessa maneira. Se não nos toleramos, pelo menos temos que ter uma relação profissional. Tu fazes o teu trabalho e eu o meu, disse.

    – Tu pensas que é fácil se relacionar com vários residentes e estudantes num ambiente de tensão como o bloco cirúrgico, respondeu.

    Depois de um dialogo duro, saímos dali com um acordo. Uma trégua. A partir deste momento começamos a nos respeitar.

    Minhas cirurgias foram marcadas adequadamente, iniciavam no horário e com materiais adequados. Em contrapartida, eu chegava antes do horário, preparava adequadamente os pacientes. Maria sempre correta, fazendo no seu estilo, claro que falando e gritando muito, mas procurando fazer o melhor. Trabalhamos em harmonia durante os dois anos de residência.

    Para minha surpresa, um ano após, iniciando minha carreira profissional, estou no consultório e chamo uma paciente: – Maria! Para minha surpresa, quando a vejo, era a Maria, a chefe do bloco.

    Tinha vindo consultar porque precisava operar a Tireoide, ela me escolhera como cirurgião.

    – Procurei o senhor para me operar, porque pude lhe acompanhar todos esses anos e sei da sua dedicação, falou.

    Fiquei surpreso e ao mesmo tempo feliz com aquelas palavras. – Poderia ter escolhido vários e escolheu a mim, pensei. Ainda mais uma cirurgia de tireoide, que é delicada, com riscos de perder a voz.

    – Emocionado, disse: – Maria, não precisa me chamar de senhor. Ë uma satisfação operar uma verdadeira amiga como tu.

    O resultado cirúrgico foi muito bom e ficamos amigos por muito tempo, até sua aposentadoria.

    O bloco cresceu, tornou-se o maior da Santa Casa; passou de cinco para treze salas, num movimento cirúrgico enorme, por onde circulam estudantes, doutorandos, residentes, anestesistas e cirurgiões de várias especialidades.

    Muito tempo depois, tive o orgulho de ser o chefe médico do famoso Bloco da Décima; meu primeiro pensamento, para controlar todo esse pessoal: preciso uma excelente chefe de enfermagem. Tive sorte, consegui e orientei para ela ser igual à Maria.

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