Do mito ao pensamento científico

 Aproveitei o título do excelente livro do professor Carlos Antônio Gottschall para tentar entender o uso de tratamentos sem comprovação científica. São tratamentos, medicamentos e vitaminas com maior ou menor grau de efeitos colaterais. Há vários artigos científicos mostrando que pouco ou nenhum efeito tem na evolução da uma doença.

     Na minha longa carreira de médico, convivendo, conversando e trocando angústias, frente a determinadas situações tento encontrar uma resposta.

     Ao entrar na faculdade de medicina logo aprendi que essa profissão não é matemática; temos várias incertezas. Entendi que a medicina, em sua história, foi pura arte médica, com escassos recursos diagnósticos ou terapêuticos. Ainda assim, sempre foi reconhecida como uma profissão de especial valor humano e social.

     Foi apenas durante a Renascença que a ciência médica se sobrepôs à prática do empirismo dominante até então. Foi com Andreas Vesalius, Pai da Anatomia Moderna, William Harvey, descobridor da circulação sanguínea, Edward Jenner, pioneiro da vacinação, só para lembrar alguns, que aos poucos a ciência desenvolveu-se, até chegar ao mundo fantástico da molécula de DNA e do genoma humano de nossos dias. A arte aprimorada com o método científico parece ser o que de melhor o homem poderia desejar para a medicina moderna.

     Esta mescla entre a arte e a ciência me fez ver por que alguns cirurgiões retiravam o apêndice em qualquer dor de barriga. Os que operavam pacientes com apêndice normal tinham mais sucesso, pois as complicações são mais frequentes nos casos verdadeiramente infectados.

     Também me fez ver que há tratamentos da moda. Muitas amigdalas foram para o lixo desnecessariamente. Houve um tempo em que retirar as amigdalas era uma panaceia. Formamos uma geração de amigdalectomizados. Várias terapêuticas foram usadas para cura das ulceras duodenais e gástricas até se obter medicamentos realmente eficazes.

     No livro de San Michele de Axel Munthe, há uma passagem em que um famoso médico, apesar de possuir o título de médico, se fazia passar por charlatão, pois o povo os preferia aos médicos titulados.

     Os professores de pediatria diziam que o tratamento para resfriados e gripes comuns era repouso e aspirina. Até o dia em que vi uma receita de um deles com antibióticos para o filho de um amigo meu. Perguntei: – Por que você prescreveu o antibiótico? – Se não prescrevo, perco o cliente; nenhuma mãe sai satisfeita do consultório com uma receita de apenas uma aspirina, e vão procurar outros médicos, respondeu. Que decepção! Além dos efeitos colaterais, quantas crianças sofreram desnecessariamente com um benzetacil nas nádegas ou tomaram remédios com gosto ruim por sete a dez dias.

      Ao mesmo tempo, há um crescimento da medicina alternativa, autorizada e financiada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em sua maioria, sem a menor comprovação científica.

      A prática é diferente da teoria. Há médicos cientistas, porém, a maioria não o é. Existe uma relação médico-paciente, é no recôndito dessa relação em que o desconhecido, as incertezas e a fé fazem com que os dois vejam a necessidade de buscar uma esperança.

      Quero deixar claro que sou a favor da ciência, portanto favorável ao uso de terapêuticas que tenham comprovação cientifica. Mas com o passar dos anos fui entendendo que a frase: “Dans la médécine comme dans l’amour, ni jamais, ni toujours” (Na medicina como no amor, nem nunca, nem sempre), cada vez faz mais sentido para mim.

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