Ingressar no curso de Medicina, na antiga Faculdade Católica de Medicina, foi como descobrir um novo universo. A expectativa do aprendizado, a compreensão da Medicina e os novos colegas, que se tornariam amizades de décadas. Um mundo novo que aos poucos se descortinava para nós, jovens imaturos e ao mesmo tempo fortes e decididos sobre o que queríamos.
Após a descoberta inicial, vieram as especialidades médicas e os estágios. Meu instinto já dizia que deveríamos estudar para sermos médicos completos, ou seja, um médico em condições de ir para uma cidade do interior e, sozinho, atender a população. Com essa ideia dividi meu estágio de sexto ano com o objetivo de voltar para o interior. Naquele tempo, os doutorandos é que escolhiam os estágios. No primeiro semestre, fiz cirurgia geral e no segundo semestre cardiologia, pois na nossa faculdade, na época, não existia estágios de medicina interna.
Como doutorando de cirurgia, nossas atividades eram nas enfermarias 20, 36 e 40 da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Logo me encantei com a enfermaria 36, chefiada pelo professor Luiz Rohde ao lado do professor adjunto Carlos Cleber Alves Nunes, junto com eles, os dois assistentes, professores Fernando Matos e Luciano Bastos Moreira. Nesse período, a Santa Casa passava por grandes dificuldades: chuva dentro das enfermarias, assoalho frágil de madeira, falta de medicamentos – os que usávamos eram doações ou amostras grátis. Com material cirúrgico precário, as enfermarias tinham média 24 leitos, com pacientes deitados um ao lado do outro, como se estivéssemos em um hospital de guerra.
Apesar destes obstáculos, o professor conduzia a enfermaria 36 com disciplina, afeto e respeito aos pacientes. Superávamos tudo isso com um ambiente era de alegria, descontração e dedicação. Estudávamos, preparávamos seminários, aulas teóricas e publicações científicas. Uma das lembranças mais clássicas era a visita aos pacientes na beira do leito, os famosos rounds do professor Rohde. Sempre pontual, organizava as opiniões de maneira hierárquica: o doutorando relatava a história e o exame físico, o residente do primeiro ano falava sobre os exames laboratoriais e radiológicos e o residente do segundo ano as hipóteses diagnósticas e a conduta. Os professores debatiam na busca de um consenso; o professor definia a conduta final. Uma aula e um aprendizado novo a cada round.
Porém, o ponto alto era o ato cirúrgico. Na minha experiência prévia, como interno do Hospital de Pronto Socorro, achava a cirurgia uma atividade difícil. Eu não conseguia entender como o cirurgião se encontrava no meio de tanto sangue, como podia retirar os órgãos sem uma visão completa. Foi vendo as cirurgias realizadas pelo professor Rohde que minha visão mudou. Suas cirurgias eram limpas, didáticas, organizadas. Ali comecei a entender os planos cirúrgicos. Ele explicava exatamente o iria fazer, qual a artéria que iria ligar, a qualidade dos fios e suturas que utilizaria. Não deixava tecidos desvitalizados, obtinha o controle total do sangramento e, depois da cirurgia, ainda discutíamos os acertos e erros.
Foi com pesar que, no final do semestre, deixei este ambiente e fui para o Instituto de Cardiologia realizar o estágio do segundo semestre. Agosto veio e se foi, assim como setembro, e eu percebia que não estava feliz. A cirurgia, que antes eu não compreendia, acabou me conquistando por completo. Pensei: para ser o médico completo seria melhor fazer a residência em cirurgia geral.
Como estávamos em outubro e meus colegas estavam mais avançados em suas escolhas, eu não teria a menor chance de conseguir entrar para a residência. Tomei coragem e fui falar com o professor se eu poderia voltar para o estágio de cirurgia. Para minha surpresa, ele aceitou. Nunca esquecerei suas palavras: “É claro. O teu conhecimento de clínica só vai te enriquecer na cirurgia. Tua pouca experiência em cirurgia não tem importância. Às vezes pode ser até melhor, pois assim não tens alguns vícios de aprendizagem”.
Assim entrei para a cobiçada residência na enfermaria 36, com grande alegria e aprendizado constante. Nesse período fui tornando cirurgião e pai pela primeira vez, com o nascimento da minha filha Renata Ao final, me sentia pronto para voltar para Santa Catarina, perto de Meleiro, minha terra natal. E eu iria voltar não só como médico completo que eu almejava, mas como cirurgião geral. Porém, os planos acabam mudando: o professor me convidou para ser instrutor na enfermaria 36 e auxiliá-lo nas cirurgias privadas. Uma oportunidade irrecusável, que acabou me levando a focar também na área acadêmica.
Durante esses anos de atuação em conjunto, fomos mais que colegas; fomos amigos. Com o professor, aprendi muito, todos os dias. Operar uma tireoide com uma gaze só, realizar cirurgias complexas do aparelho digestivo – algo que poucos faziam na época. Mas, além da técnica, foi com o professor que vi a importância da precisa indicação cirúrgica, compreendi a importância do relacionamento humano e da afeição aos pacientes. Foi ele quem mostrou na prática como é imprescindível o respeito aos colegas, aos enfermeiros e demais funcionários. Com ele aprendi uma profissão e em vez de um médico completo me tornei um cirurgião completo.