O menino impoluto

Um menino de doze para treze anos estava caminhando nos arredores do Quarto Distrito, quando viu um carroceiro bêbado, no meio da rua, maltratando seu cavalo com violentas chicotadas. Além disso, com um estilete de ferro cutucava o dorso e o flanco do animal para fazê-lo andar. Os transeuntes em sua volta davam risadas, ninguém fazia nada, apenas se divertiam com a cena. O Menino não resistiu em ver aquele sofrimento; brigou com o carroceiro, prontamente retirou os arreios do cavalo e começou a andar com ele pela cidade. O carroceiro sem noção do acontecido ficou dormindo na sua carroça.
O que fazer? Lembrou-se da Associação Protetora dos Animais, comandada pela Sra. Palmira Gobbi, na qual já tivera contato por causa de maus-tratos com cães soltos nas ruas. A casa dela era longe, no bairro Menino Deus. Ele foi andando com o cavalo durante seis horas e chegou na residência da Dona Palmira às dez horas da noite. Claro que ela ficou orgulhosa do feito pois era uma pioneira da luta em favor dos animais, – Qual é o seu nome? Perguntou. – Mário, respondeu o menino.
O menino perdeu o pai cedo e sua mãe, sobrevivente do holocausto, teve que sozinha lutar para a formação dele e de seu irmão. Essas marcas certamente influenciaram na sua afetividade e generosidade com o próximo, atributos difíceis, nos dias de hoje, encontrar nas pessoas. Então, decidiu ser médico para ajudar não só os animais, mas também as pessoas.
Vim a conhecê-lo quando ingressamos na faculdade. Tinha um cabelo de fogo, ruivo. Achava uma pessoa diferenciada, não só pelo seu conhecimento de mundo e da medicina, mas também pelo seu modo gentil com os colegas.
Nossa primeira aproximação foi nas primeiras semanas de aula, quando coube a ele dar alguma informação para a turma. Havia uma grande algazarra, não se conseguia ouvir direito. Fiquei chateado e num tom bem alto, apontando para ele, disse: Vamos ouvir esta figura impoluta e saltitante. Fez-se um silencio e ele pode dar a informação. Não sei de onde eu tirei essas palavras elogiosas. Só sei que foram precisas, impactantes e verdadeiras, pois se referem a uma pessoa honesta e pura.
Algum tempo depois, a turma programou uma excursão para Gramado. Disse para a Norma – minha futura mulher e estávamos iniciando o namoro -, que não poderia ir porque não teria ônibus para chegar as sete da manhã num domingo em frente a faculdade. Para minha surpresa o Mário e a Norma apareceram num opala creme na minha casa.
Ele me fala: “A Norma com aquele modo peculiar bem dela disse que não poderias vir, moras longe. Ela nada sugeriu, por alguma razão propus te buscar”. Fiquei alegre e rapidamente entrei no carro pois o ônibus contratado ficou nos esperando.
Durante a faculdade fomos amigos. Ele também namorou uma colega de turma e junto com o Oberdan e a Lídia formamos um sexteto para acampamentos nas praias, então desertas, catarinenses.
Quando éramos doutorando de cirurgia tínhamos que ministrar uma aula, a ele coube avaliação pré-operatória. Falou sobre os exames que tinham que ser solicitados para os pacientes que iriam ser submetidos a uma cirurgia. Porém o mais importante foi quando ele mostrou um papel surrado que continha um texto quase inelegível de um paciente de outra enfermaria. O paciente escreveu que se ele soubesse que a cirurgia o deixaria sem falar, não a faria. Ninguém explicou para o paciente como ele ficaria após a cirurgia. Esta relação médico-paciente era mais importante que qualquer exame. Ficamos todos emocionados. Foi uma lição de humanidade para todos. O professor responsável pela aula posteriormente me confidenciou o desejo escolhê-lo para a residência. Porém ele optou por fazê-la no Rio de Janeiro, onde exerceu a profissão de cirurgião por longos anos.
Foi o orador da turma com um belíssimo discurso em que convidava todos os formandos: “Levar saúde a população”.
Esses episódios demostram sua grande sensibilidade. Naturalmente durante um bom tempo teve que aguentar aquela piadinha infame: “Esse é o Mário. Que Mário? Aquele que atrás do armário”. Na verdade, o Mário que estamos falando é o “Menino Impoluto”, amigo de todos que cruzaram pela sua vida.

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