Pacientes Motivadores

Paciente 1 – Determinante nas escolhas
Eu iniciava a minha carreira profissional como médica, mas ainda estudante. Era residente de segundo ano (R2) de pediatria no Hospital da Criança Santo Antônio. Era uma época mais difícil para as crianças porque, além de um surto de Meningite Meningocócica, ainda imperavam os casos de desnutrição calórico-proteica por carências nutricionais. Eram muitas enfermarias com estas crianças internadas no hospital e a mortalidade infantil ainda era alta. Em meio a muito trabalho e estudo, em uma destas enfermarias onde eu revia os casos clínicos e prescrevia, me chamou muita atenção o caso da Aninha.

Aninha tinha um ano e pouco de idade e era uma destas crianças com diagnóstico de desnutrição muito grave, entretanto eu verificava que a mãe dela era muito atenciosa, estava sempre lá, e o pai também. Ele, muito ansioso, sempre me questionando sobre o estado dela. Me acendeu um alerta e pensei: Esta criança é diferente das outras que estão nesta enfermaria, a desnutrição com certeza não é por carência nutricional.

Resolvi investigar melhor, mesmo sem o apoio do professor orientador daquela enfermaria. Suspeitava de outro diagnóstico que causasse malnutrição e poderia ser o de Doença Celíaca. Imediatamente fui me assessorar com a professora Themis Reverbel da Silveira, gastroenterologista pediátrica, que me orientou em toda a investigação e procedimentos. Os exames concluíram ser este mesmo o diagnóstico. O problema era que, com o grau avançado da doença, a menina não se recuperava e culminou com o quadro de septicemia pelo baixo estado do seu sistema imunológico.

Este episódio ficou gravado na minha memória, pois me lembro do meu grau de estresse na vontade de conseguir fazer o melhor possível para salvar a vida dela. Corri para conseguir a transferência da Aninha para a Unidade de Controle de Infecção (UCI) sob a supervisão do professor Gentil Bonetti – lembrando que naquela época não havia nem UTI no hospital. Os pacientes graves, em geral, iam para esta enfermaria.

Fiquei acompanhando o caso com ele, que era brilhante no seu trabalho, e usou todo o seu conhecimento para levá-la para a cura. Aos poucos e após alguns meses, Aninha se recuperou e começou a ganhar peso. A mãe, super protetora, já começou a cozinhar as comidas sem glúten que a menina precisava e com esmero foi fazendo pratos deliciosos que me levava para provar. Depois disto fez um serviço também às outras mães de crianças que necessitavam desta dieta, porque me fornecia as receitas testadas para eu distribuir.

Aninha marcou muito meu início de carreira e a acompanhei por muitos anos. Firmamos laços mais estreitos e a Aninha, agora com mais de quarenta anos de idade. ainda se comunica comigo. Se formou em curso superior, é mãe adotiva de um menino e hoje, talvez por algum resquício daquela época com malnutrição, apresenta um certo sobrepeso.

Como tudo é um caminho de duas vias, o caso da Aninha foi determinante na minha pós-residência médica para eu ser chamada a trabalhar na UCI sob a supervisão do prof. Gentil Bonetti. Trabalhei na UCI por alguns anos e sou muita grata ao aprendizado que lá adquiri. Posteriormente, fiz uma pós graduação em Gastroenterologia Pediátrica sob a orientação da prof. Themis Reverbel, a qual também só tenho a agradecer, pois foi de grande importância para a minha carreira profissional. Ambos grandes mestres e profissionais dentro da sua área da pediatria.

Paciente 2 – gaiteiro da praça
Após trabalhar por alguns anos como pediatra no Hospital da Criança Conceição (HCC) e também trabalhando na enfermaria 42 da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, passei a atuar somente como Gastroenterologista Pediátrica e era a única especialista no HCC. Este é um hospital que atende somente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), referencia para todo o estado. Atendia um número muito grande de pacientes no ambulatório e fazia supervisão aos internados. Naquela época eram muitas as dificuldades para se conseguir seguir os melhores protocolos para os pacientes, mas contava com ajuda dos outros centros quando necessitava. Como sempre, alguns casos eram mais simples, outros mais complicados e com dedicação e buscando a equipe multidisciplinar ia resolvendo. Ainda haviam os residentes de pediatria os quais orientava.

No atendimento, alguns pacientes requeriam mais dedicação e esforço do que outros, mas o interessante era a respostas das mães destas crianças. Para algumas crianças cujo atendimento, para mim, tinha sido muito fácil e tranquilo, com frequência as mães me enchiam de agradecimento. Para outras, mais difíceis, em que a minha atuação havia sido fundamental na recuperação do paciente, às vezes não havia nenhum reconhecimento. Entretanto, para mim o trabalho sempre era gratificante.

Um destes casos foi de um bebê que nasceu bem prematuramente e ficou muitos meses na UTI neonatal. Fui chamada pelo neonatologista algumas vezes para avaliação. Lembro-me que uma das ocasiões foi por hemorragia digestiva e depois por hepatopatia. Segui acompanhando o caso da criança. A mãe, muito dedicada, morava no interior, mas ficou por perto e não saia do hospital.

Devido ao grau de prematuridade do bebê houve toda a sorte de complicações clínicas e o neonatologista já estava quase sem esperanças de que a criança conseguisse se desenvolver. Entretanto, ele foi driblando uma por uma e foi crescendo dentro da incubadora onde permaneceu alguns meses. Mara, mãe dele, sempre com um sorriso no rosto, tinha toda a fé que ele sairia bem e, por algum motivo que eu desconheço, ela se apegou muito a mim. Era frequente ela ir me procurar no ambulatório para eu ir ver o pequeno – talvez porque eu agilizava um pouco o pessoal da enfermagem. E lá ia eu. Na verdade, quem estava no maior empenho no atendimento obviamente eram os neonatologistas da UTI neonatal.

Pois o menino se desenvolveu, saiu da incubadora e chegou aos esperados dois quilos de peso para poder ter alta hospitalar. Mara não cabia mais no contentamento, mas nós seguíamos todos preocupados com as sequelas muito possíveis e ainda sem muita esperança de um desenvolvimento normal deste bebê. Orientei o retorno no ambulatório para revisão pois a criança apresentava uma hepatopatia, cuja biópsia mostrou uma fibrose hepática. Mara estava sempre com uma alegria marcante e ninguém demovia dela a certeza de que tudo ficaria bem.

Seguiram-se os meses de acompanhamento no ambulatório e a criança melhorando e crescendo, e a Mara vinha com ele de uma cidade do interior em uma longa viagem. Sempre sem se queixar e cada vez mais confiante na recuperação do filho, uma fé inabalável. Quando eu vi que havia condições da criança ser tratada pelo pediatra da sua cidade, mandei o laudo e dispensei-a destas viagens mensais.

Passou-se algum tempo e a Mara telefonou para a minha casa na maior das alegrias: queria me informar do estado do filho. Encantada referiu que ele estava cada vez melhor já caminhando e se desenvolvendo.

Não voltou mais ao hospital. Com o ritmo acelerado de trabalho nem me lembrei mais e, após alguns anos, ela me ligou novamente para contar que o menino cresceu bem e gostava muito de música – tinha um dom especial.

Alguns anos depois, me liga ela:
– Dra, a senhora tem que vir aqui na nossa cidade porque vou lhe contar uma coisa. O menino é um ótimo gaiteiro. Toca na praça aqui da cidade e faz o maior sucesso.

E dava a maior risada, muito feliz. Continuava ela:
– A senhora nem sabe, mas vem uma rede de televisão aqui fazer um programa com ele. Eu contei toda a história, mas a senhora tem que vir aqui para dar uma entrevista para eles.

Onde a Mara queria me colocar!

Falei que eu não podia, até porque eu não fui a responsável principal da boa recuperação dele, e sim os neonatologistas. Não me senti nem um pouco a vontade de entrar nesta empreitada.

Não sei se foi feito o programa com a criança , mas a minha recusa levou ao rompimento de contato da Mara comigo. Só sei que me senti também muito feliz ao saber desta história da evolução tão espetacular do menino e tive mais um aprendizado para a minha clinica médica.

Depois disto observei com mais respeito a intuição das mães dos doentes e verifiquei, com frequência, que tanto a fé dos pais de pacientes graves como a das crianças maiorzinhas ajudava muito na recuperação.

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