Iniciava o ano de 1999 e eu estava no auge da minha carreira como gastropediatra e endoscopista digestiva. Trabalhava muito como a única especialista no Hospital da Criança Conceição e ainda no consultório, além do mestrado de Gastroenterologia na UFRGS. Como fazem os médicos, eu conseguia dar conta de tudo, mais ainda dos filhos, marido, da mãe, enfim, da vida familiar. Claro que não sem algum prejuízo na convivência. Minha mãe morava sozinha e contava com o meu auxílio, já que a minha irmã morava em Santa Catarina e nós aqui em Porto Alegre.
A vida seguia com o trabalho árduo, mas num ritmo que eu dava conta. Tenho um marido companheiro que me ajudava com os filhos e as tarefas de casa. Também tive a sorte de ter uma funcionária exemplar para os serviços da casa. Portanto, eu conseguia ter algum espaço para o lazer. Mas eis que naquele início do ano comecei a pensar diariamente e demais no meu pai. Ele estava há algum tempo meio distante e resolvi ligar para ele. Ao telefone ele me disse:
– Não estou nada bem de saúde, fiz vários exames e foi indicada a minha hospitalização.
Começou a minha corrida para lhe assessorar no que fosse possível. Foram idas ao hospital, conversas com os médicos e, em seguida, veio o diagnóstico: Câncer hepático, logo a área que eu estudava. Sabia que ele teria somente uns oito meses de sobrevida. Não havia mais o que fazer.
Foi um tempo de angústia e de reconciliação com ele. No primeiro dia, no Hospital da PUC, nos abraçamos e choramos. E nestes meses finais da vida dele eu pude sentir todo o amor dele por mim e vice-versa. Ele só queria chegar no ano 2000, mas foi impossível. Só sinto que num dos últimos dias de vida dele, nós no hospital, toda a família reunida no que seria uma despedida, ele fixava o olhar em mim como se quisesse me dizer algo, mas deixei passar o momento. Até hoje ainda penso no que será que ele queria me dizer. Coisas da vida e, talvez, no fundo, eu saiba.
Durante todo este percurso a minha vida de trabalho e estudos continuava. Eu não havia contado a história dele para a minha mãe, para não deixá-la preocupada – sabia que sempre houve uma ligação forte entre eles. E eu ainda poderia ser surpreendida naquele ano, com algo que jamais eu esperasse naquele momento. Numa manhã, ainda doze dias antes do meu pai falecer, me liga uma vizinha e amiga preocupada com a ausência de resposta no apartamento dela. Corremos para lá, eu e o meu marido. Eu, que já havia sofrido baques muito intensos na minha vida, tive que resistir a mais este. Naquela noite ela dera seu último suspiro, morte súbita, dormindo. Até hoje eu não sei como pude suportar o golpe, pois a minha ligação com a mãe era muito grande.
Era uma pessoa de pura bondade, de princípios nobres, dedicada demais às filhas, aos netos e com uma história de vida incrível. Uma mulher que, nascida em 1915, estudou e se formou professora, sempre dedicada a sua profissão trazendo tudo de melhor para os seus alunos. Muito jovem, iniciou numa cidadezinha afastada cujo único acesso para a chegada era andando a cavalo. Foi uma guerreira. Numa época em que o habitual era a mulher casar cedo, ela quebrou o paradigma. Nem pensava em se casar, queria estudar e trabalhar. O amor chegou bem depois, quando conheceu meu pai em um outro pequeno vilarejo para onde ela tinha sido transferida.
Como seguir agora? Perdi o meu maior apoio, bateu o desespero. Mais ainda quando eu olhava o meu filho mais velho, então com dezessete anos e que sentiu demais, não aceitava. Tinha sido, em parte, criado por ela que me substituía sempre nas minhas ausências por causa do trabalho. Tinha um carinho imenso por ela e só falava: mas ela era tão boa, tão boa, como pode? Foi no velório dela que eu vi o menino crescer e se tornar gigante quando fez questão de ir junto carregando o caixão. Os sofrimentos na vida nos traz algo que temos que aprender e alguma evolução.
O inusitado aconteceu num dia em que fui ao apartamento dela, pois tinha que arrumar as coisas, ver o que ficaria, tarefa nada fácil . Ali em cima da estante, quase caindo, o caderno de poesias que ela escrevia quando jovem. Pensei: como ela deixou aqui se guardava este caderno a sete chaves? Abri. Qual foi a minha surpresa, várias páginas em branco e só uma poesia. Era sobre a morte. Esta que vou transcrever aqui.
Morrer
Quando eu me for p’ra sempre desta vida
Para o reino da paz da eternidade,
Deixai que eu leve p’ra campa querida,
Os meus olhos abertos, sem saudades…
Quando eu morrer, não chorem meus amigos,
Pois a morte é uma causa natural;
Morrer é ir dormir entre os jazigos,
Na grande paz do mundo sepulcral!
Morrer, é ir viver outra existência,
Cheia de quietude e mansidão;
É deixar este mundo de inclemência,
Onde existe só luto e maldição!
A morte é um grande sono, sono eterno.
Sem pesadelo, sem nunca acordar